O professor de Artes Visuais, Tiago Bianchi Silva Araújo, de 42 anos, lecionava na Escola Municipal Prof.ª Eulália Neto Lessa, no Bairro Manoel Taveira, em Campo Grande (MS). Ele foi achado morto sobre a sua cama, às 19h25 da 3ª. feira (21.mar.23), no seu apartamento, na Rua Náutico, no Jardim Panamá. Bianchi tomou uma combinação de remédios que o levaram à morte.
Na 4ª. feira (22.mar.23), a escola municipal em que ele dava aula nem sequer parou suas atividades em luto ao professor, assim como nenhuma importância real foi dada a perda do funcionário público.
Tiago é mais um educador de Artes que sucumbiu a negligência da Junta Médica de Educação da Prefeitura de Campo Grande, que segundo denunciantes, tem obrigado educadores a trabalhar, mesmo estes sofrendo com doenças psicológicas, que adquiriram justamente no trabalho. “Um dos principais desafios do professor de arte é atuar dentro da sua linguagem artística de formação. O que a gente observa, é que há uma resistência com o ensino de teatro, dança e música nas escolas. Então, o primeiro fator que eu aponto que vai começando a gerar uma certa frustração para o professor de arte, é ele não exercer, atuar dentro da sua linguagem artística na qual ele é formado”, explicou uma educadora da Capital, que terá o nome mantido em sigilo.
Sem poder dar aula dentro de sua área de formação, o professor é pressionado para produzir atividades que lhe fogem ao conhecimento. “Eu sou formado em Teatro, mas querem que eu faça desenho… Como assim? As pedagogas chegam me cobrando, a diretoria cobra também. Eles não querem que eu ensine aos alunos a arte da cena e sim o desenho, para fazer murais, mas isso não tem nada a ver com a minha formação. Aí produzo o que dá, e cada dia é pior que o outro, só reclamação”, apontou outro educador.
Depois de adoecerem na sala, os professores tentam buscar tratamento e, nesse momento, começa uma sequência de humilhações da Junta Médica de Educação. No caso de Tiago, as humilhações ocorreram a nível municipal. A Secretaria de Educação da Capital (Semed), ameaçava fazer descontos de até 15 dias na folha de pagamento, caso ele não fosse dar aulas. “Ele estava se dopando para ir para a escola. Sentia o coração disparar. E o diretor pressionava, dizendo que os pais reclamam dele o tempo todo. Ele implorou para ser trocado de secretaria até sarar. Queria ir para a cultura até terminar o tratamento”, relatou a irmã de Tiago, Maria Bianchi Silva Araújo, de 44 anos, que também é professora, mas em Ivinhema (MS).
De acordo com a irmã, Tiago chegou a avisar que iria desistir dos concursos de 40h que tinha na rede de educação. “No domingo [19.mar.23] ele queria desistir do concurso e eu pedi para ele aguardar mais um pouco, para eu contratar uma advogada… A intenção era forçar a junta médica a voltar atrás na decisão e ele conseguir terminar o tratamento”, explicou Maria.
“Os amigos se reuniram no domingo e fizeram uma vaquinha para pagar a terapia. E minha irmã iria para Campo Grande de Dourados na sexta para visitá-lo e tentar trazê-lo para Ivinhema”, narrou.
A irmã resumiu o quadro psicológico de Tiago: “Ele estava muito desesperado. Muito mesmo. Falava que só de pensar em voltar para escola, sentia o coração acelerar”.
Maria disse que ficou devastada com a insensibilidade da unidade escolar em que Tiago dava aula. “A escola em que eu trabalho [aqui em Ivinhema] decretou luto. A que meu irmão trabalhava não fechou”, lamentou. Ela classificou a atitude da unidade: “Sem amor… Sem respeito e sem Empatia”, finalizou.
Tiago começou a ter quadros depressivos determinados por médico em maio de 2022. Desde então, tinha atestados que comprovavam sua situação psíquica. Ele tentava conseguir a liberação para um período de readaptação com a junta médica educacional campo-grandense, mas as ocasiões foram negadas.
Readaptação é um termo usado como mecanismo legal na lei federal 8.112 de 1990, que descreve os direitos e deveres do funcionário público. Em Mato Grosso do Sul, a readaptação sugere que o profissional seja inserido em um cargo compatível com sua capacidade física ou mental, verificada em inspeção médica oficial. Esse direito está previsto na Lei nº 1.102/90, de 10/10/90, descrita no artigo 42 do Estatuto dos funcionários públicos civis de MS.
Num laudo horas antes de sua morte, em 20-03-2023, o médico Fernando de Freitas Monteiro atestou com orientações: “Atesto para devidos fins que o paciente acima apresenta doença grave e incapacitante. Resumidamente, seu quadro encontra-se melhor representado pelas seguintes categorias da cid-10: f32.2; f41.1; f43.1; f63.8 reforços que o paciente apresenta patologia grave com ideações suicidas e agressivas frequentes e acredito que permanecer no seu ambiente de trabalho mostra-se um risco para ele e para outras pessoas. Sugiro que o mesmo seja afastado das atividades profissionais atuais. Período previsto de afastamento: 60 (sessenta) dias a contar da data de hoje”. Eis a íntegra.
No mesmo dia 20, data anterior ao óbito, no Boletim Médico Pericial da prefeitura de Campo Grande, os médicos Wilson Kioshi Matsumoto e Tonny Holosbach Fernandes Lopes negaram o pedido de afastamento de Tiago das atividades de sala de aula. Os peritos justificaram: “Parecer conclusivo: considerando as informações declaradas, documentação médica apresentada, o declarado no exame clínico e mental atual e profissiografia, conclui-se que não há incapacidade laborativa para a atividade de vínculo”. Eis a íntegra do documento:
Em mensagem trocada com a irmã, Tiago reclamava de estar sendo tratado com desrespeito. Eis as conversas:
A família desenvolveu uma teoria de como pode ter sido as últimas horas de Tiago: “Ele chegou muito descontrolado em casa depois da terceira vez sendo humilhado. Tomou os comprimidos para que a dor passasse… sentou-se no piano e tocou suas últimas notas…. Com uma intensidade única. Todos os vizinhos ouviram. Depois começou a passar mal e se jogou na cama desmaiado. Essa é nossa teoria pela ordem dos fatos reunidos até aqui por vizinhos, amigos que acompanharam e últimas msg (sic) ”, disse a irmã.
Maria e os familiares acreditam que Tiago não planejou tirar a própria vida. “O modo como o apê estava, o bilhete que deixou para as crianças…tudo demonstra que não foi planejado. Foi um surto desesperador devido ao stress causado pela junta médica. Ele fez planos com minha irmã mais velha para o fim de semana”, concluiu, compartilhando a mensagem abaixo com o TeatrineTV:
Júlio César dos Santos, de 45 anos, começou com crise de pânico e transtorno de ansiedade no dia 17/12/2015. Naquele dia, ele foi levado para a Unidade de Pronto Atendimento do Bairro Universitário (UPA), segundo a sua esposa Hellen, os sintomas apontavam para um problema cardíaco. “Durante a anamnese pelos medicamentos que ele tomava, o médico percebeu que se tratava de uma crise de ansiedade”, contou a esposa de Júlio.
Hellen explicou à reportagem que Júlio fazia tratamento para a depressão desde 2014, mas depois da crise de 2015, vieram muitas outras no período das férias. “Procuramos o psiquiatra e ele achou melhor afastar o Júlio da sala de aula, já que o gatilho das crises é a sala de aula”, relatou.
Em 2016 o médico psiquiatra deu início a readaptação de Júlio, visto que mesmo afastado de suas atividades laborais, ele se deprimia, então foi solicitado a readaptação. “Ele ficou readaptado por quatro anos, tinha alguns momentos de crise, mas não se comparava às crises de quando estava em sala de aula. Trabalhou os quatro anos readaptado sem pegar atestado, desenvolveu um excelente trabalho com a equipe da escola e tudo estava bem…”, lembrou Hellen.
Em 2019 veio a pandemia e Júlio continuou readaptado.
“No início de 2022, a junta não aceitou mais a readaptação dele, mesmo ele tendo laudo de dois psiquiatras e da psicóloga com quem faz terapia. Uma das alegações era que ele estava bem vestido, higienizado, e bem nutrido, essas foram as alegações da junta. Eu vi, estava junto todas as vezes. É claro que ele vai estar bem nutrido, tomado banho…Eu sou enfermeira e sei muito bem como cuidar de uma pessoa, ainda mais se ela não está bem, mentalmente falando”, argumentou a esposa.
No dia 08/03/2022 Júlio teve uma crise de ansiedade na escola que o levou a uma síncope. “Ele foi encontrado no chão, pois caiu de um banco no laboratório de artes. Estava um pouco confuso e sonolento. Me ligaram e fui correndo buscá-lo para levar no UPA”, narrou Hellen.
Na unidade de saúde, foram feitos vários exames que acusaram o quadro de infarto, então, foi solicitado vaga zero, e ele foi de ambulância pra Santa Casa, onde Júlio ficou por 12h na área vermelha.
Foram refeitos todos os exames e a cardiologia liberou, pedindo para procurar o cardiologista pessoal. “O resultado de infarto era engano, mais uma crise de ansiedade que levou ele para o hospital dessa vez. Procuramos o cardiologista, o neurologista e fizemos todos os exames que foram solicitados e todos com resultado normal. A única coisa que acontece com o Júlio é o pânico, transtorno de ansiedade, mais o diagnóstico de depressão”, detalhou Hellen.
Em setembro de 2022, a junta médica de saúde dos professores já havia negado 4 vezes o pedido de readaptação de Júlio. Assim, Hellen decidiu que a família devia intervir, movendo uma ação judicial. “Nós entramos com ação contra a perícia do IMPCG por meios próprios e o Júlio foi afastado novamente do trabalho. Nesse meio tempo ele deprimiu muito, quase não come, emagreceu, não tem vontade de nada e pensamentos suicidas constantes”, revelou a esposa.
Em 9 de março deste ano, Júlio retornou à consulta com o psiquiatra e ele pediu novamente a readaptação. Porém, o pedido foi negado outra vez. “Voltamos ao psiquiatra e ele afastou novamente o Júlio e o problema só aumenta”, lamentou Hellen.
A esposa disse que a readaptação para Júlio é essencial, pois ele não pode ficar parado sem trabalhar, porque isso o deprime muito. “Isso acontece desde quando eu o conheço, são só 25 anos, porém infelizmente a sala de aula é um gatilho para a doença dele”, considerou Hellen.
Júlio é professor da rede municipal de ensino desde 1999. Ele nunca se ausentou do trabalho e nunca pegou atestado nesse período que antecedeu a crise. Agora que precisou do auxílio de seu emprego para tratar uma doença, Júlio está sendo submetido a humilhações. “Ele sempre teve um excelente relacionamento com os alunos e equipe de trabalho, por onde passou os alunos adoram ele, mas infelizmente o que a junta está fazendo é desumano. Já foram dois suicídios por causa do mesmo problema dele. Isso é o que sabemos, porque a mídia mostrou, e se houve mais? Até quando isso vai continuar acontecendo? Vidas indo embora por conta de uma equipe incompetente que se julga capaz de avaliar o paciente sem nem ler os laudos e exames que ele traz na hora de ser periciado”, questionou Hellen.
Num relato didático sobre a situação a qual os professores estão sendo submetidos, uma educadora alerta, inclusive, que as secretarias de educação estariam colocando os alunos em risco e que o mesmo que se pratica no município, é praticado na Secretária Estadual de Eduacação (SED).
“Tem toda a questão dessa perícia médica, desse olhar insensível que essa parte governamental, tanto a prefeitura quanto o governo do estado, têm com relação ao trabalho diário do professor. Ele está ali, é evidente o problema que ele está apresentando, ele não está bem! Mas muitas vezes ele se vê obrigado a voltar a trabalhar em sala de aula. E aí, além de piorar o seu estado de saúde, ele também coloca em risco os alunos. Porque, num momento de crise, né? De surto, de crise nervosa, ele pode fazer algo muito sério. Então assim, eles não pensam no risco que esse professor corre em voltar para sala de aula. Eles obrigam o professor a voltar a trabalhar e nesse processo colocam em risco a saúde do professor, que muitas vezes é negligenciada, está sendo negligenciada! E também os alunos”, apontou.
A professora explicou que assim como os demais professores das outras disciplinas, o professor de arte, diariamente, está diante de problemas seríssimos em sala de aula: nível de aprendizagem, questões comportamentais. “E isso, somado a sobrecarga diária, isso tudo vem adoecendo o professor. Isso tudo vem afetando a sua saúde mental. E ele se vê, muitas vezes, na necessidade de se afastar um pouco dessas atividades escolares. Mas hoje, um professor convocado, um professor com horas complementares, tanto na prefeitura quanto no estado, ele não tem direito de pedir um afastamento de 30 dias. Porque se ele precisar de afastar 30 dias de suas atividades, ele perderá a sua vaga, perderá o seu emprego”, denunciou.
Ainda segundo a educadora, os peritos médicos e gerentes de educação têm sido negligentes. “Esse direito de afastamento muitas vezes está sendo negado e esses órgãos, prefeitura e estado, não estão pensando nisso. E aí o professor dentro desse processo de se ver obrigado a voltar a trabalhar em sala de aula, ele se vê perdido e num estado muito frágil. Infelizmente, isso pode gerar essas situações que aconteceram com o Tiago e com outros educadores”, considerou.
Ariana Savalla de Freitas usou sua rede social para relatar sua luta contra doença e contra o desrespeito da administração educacional da Capital. Ela lecionava na mesma escola que Tiago: “Exclui meu Facebook há um certo tempo depois de tornar público um drama de injustiça que vivo na Escola Eulalia Neto Lessa. Hoje decidi retornar minha conta do FB pq não posso me calar diante de mais uma INJUSTIÇA na vida de um professor. Trabalhava na mesma escola que eu. Professor e amigo e de familiares meus. Irmão de fé da mesma igreja! Ontem me deparo com a chocante e triste notícia de que esse professor e pessoa querida se foi. Se foi pela dor da angústia que sentia. Eu não o julgo e vc tbm não deveria. Vc sabe o que é ser achincalhado em uma perícia médica? Vc sabe o que é trabalhar em lugar tóxico com pessoas tóxicas e que lideram o lugar fingindo serem perfeitas e amáveis? Estou aqui pra clamar por justiça, pelo professor Tiago, pela família dele, por professores que vivem dramas da falta de saúde mental e que somados a um sistema podre de educação e política fazem com que hoje uma família, centenas de amigos e profissionais, igreja e colegas de trabalho chorem pela ausência de uma pessoa como era o Tiago Bianchi. Até quando essa gente incoerente e de tamanha incompetência vai gerir e liderar pessoas?Poderia ter sido eu? Sim poderia! Ninguém se importa até que a vida se esvai por completo. Ele pediu ajuda, não foi ouvido. Deus seja a força e amparo pra todos que estão sofrendo com tudo isso. #Justiça por vc Tiago Bianchi (sic)”, desabafou.
O Sindicato Campo-grandense dos Profissionais da Educação Pública (ACP) emitiu uma nota na 4ª. feira (22.mar) cobrando providências da Prefeitura Municipal de Campo Grande para que se façam ações de proteção à vida e à saúde de profissionais da educação pública da Rede Municipal de Ensino (Reme). “Lamentavelmente, trabalhadores e trabalhadoras da educação têm sofrido graves problemas que acometem a saúde mental, além das enfermidades físicas. O respeito às legislações que garantem os direitos de profissionais da educação pública quanto à proteção à saúde e tratamento médico, como o direito à readaptação e afastamento por licença médica, tem sido uma das principais lutas da ACP, por meio da atuação da secretaria jurídica do sindicato”, disse a organização trabalhista.
Segundo a ACP, desde 2018, quando a prefeitura de Campo Grande publicou o Decreto n. 13.570, revogando a readaptação de todos os servidores e servidoras da educação, ferindo as legislações vigentes, a ACP ingressou com ação judicial, na qual teve sentença favorável ao sindicato. “A ACP ainda buscou a via do diálogo com a prefeitura, por meio da Secretaria de Gestão e a coordenação da junta médica. No entanto, a prefeitura continua a conferir tratamento inadequado aos profissionais da educação, com atitudes que ferem as diretrizes de humanização e as normas técnicas no atendimento à saúde, como negativas, pela junta médica, de readaptação e licenças médicas sem fundamentação e em desacordo com o assistente técnico”, denunciou.
O sindicato apontou a situação crítica do tratamento aos educadores na Capital: “Muitos educadores e educadoras encontram- se em sofrimento psicológico grave, o que leva à incapacidade para o trabalho e à destruição de suas relações pessoais. A inércia da prefeitura municipal de Campo Grande em tomar providências tem levado à perda de vidas de educadores e educadoras. A ACP denuncia a falta de atenção à saúde por parte do Poder Executivo Municipal e cobra políticas públicas que protejam a vida de nossos professores e professoras. Basta de adoecimento e vidas perdidas! “, finalizou.
O presidente da ACP, professor Gilvano Kunzler Bronzoni aparece em um vídeo publicado no Instagram oficial do sindicato, convocando servidores da educação para um ato em frente ao IMPCG. A manifestação é crítica às decisões da junta médica do órgão ligada à prefeitura de Campo Grande. Eis o vídeo:
A Associação Sul-mato-grossense de Arte Educadores (ASMAE), disse por meio da professora Vera Penzo: “A nossa luta tem sido sempre em função da defesa da qualidade do ensino de Arte e do respeito ao trabalho do professor. A ASMAE já emitiu várias cartas, documentos sobre isso. Porque as condições de trabalho, quando precárias ou muito opressivas, elas geram esse tipo de adoecimento… eu mesma já fui vítima disso. Eu posso dizer que a gente luta contra tudo isso, contra todo tipo de opressão”, disse Penzo, que foi a última presidente à frente da ASMAE. A Associação agora deve passar por novo pleito eleitoral para eleger a nova presidência.
A reportagem entrou em contato com as assessorias de imprensa das Secretarias de Educação do estado e do município de Campo Grande, mas até o fechamento da matéria não houve resposta.
O espaço segue aberto para futuros posicionamentos.
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